Yannis Tsarouchis
O jovem marinheiro
Luis Cernuda
Tradução de Alexandre Bonafim
O
mar, e nada mais.
Insaciável,
insaciável.
Com
pé desnudo caminhavas sobre esquecida areia,
Docemente
perturbado, como o homem quando um prazer espera,
Teu
cabelo seguia a invocação frenética do vento
Todo
teu volteio apaixonado albatroz,
A
quem seu trágico desejar brotava em asas,
Ao
único mestre respondias:
O
mar, única criatura
Que
poderia assumir tua vida possuindo-te.
Ter
somente com os olhos não te bastava,
Nem
o ligeiro abraço do nadador indiferente;
Querias
ainda mais:
Seus
infalíveis lábios transparentes contra os teus ávidos.
Tua
quebrada cintura contra o argênteo escudo de seu ventre,
E
a vida escapando,
Como
sangue sem cárcere,
Do
fatal esquecimento em que caías.
Aí
já estás.
Não
podes recordar,
Porque
agora mesmo tu eras silenciosa recordação;
E
aquela remota beleza,
Em
teu corpo cifrada como feliz coluna,
Hoje
só alenta a mim,
Em
mim que a revivo sob esta escura forma,
Que
quando tu vivias
Sobre
um altar invisível te adivinhava erguido.
Não
te bastava
O
sol de língua ardente sobre o negro diamante de tua pele,
Ao
largo de tantas lentas manhãs, ofertadas em ócio celeste,
Plenas
de um luzente pólen, igual à corola de uma flor feliz,
De
repouso divino, divina indiferença;
Caído
o corpo flexível e seguro, como uma arma mortal,
Ante
a grande criatura enigmática, o mar inexpressável,
Sem
desejo nem pena, igual a um Deus,
Que
sem embargo houvesse conhecido, à semelhança do homem,
Nossos
desejos infecundos, nossas penas perdidas.
Olha
também para longe,
Aquelas
escuras tardes, quando severas nuvens,
Denso
enxame de negras asas,
Silêncio
e declínio vertiam sobre o mar;
E
enquanto as gaivotas encarnavam a angústia do ar invadido pela tormenta,
Recorda,
ao mar, sacudindo sua entranha,
Como
insano que desejasse arrancar na luz,
O
núcleo secreto de seu mal,
Torcendo
em ondas seu pálido corpo,
Seu
inesgotável corpo dolorido,
Assombrado
ante teu amor, também inesgotável,
Em
que pudesses levar sobre sua fronte atormentada
A
concha protetora de uma mão.
As
graças vagabundas de abril
Abriram
suas pequenas folhas sobre a areia preguiçosa.
Uma
juventude nova corria pelas veias dos homens invernais;
Escapavam
timidezes, calafrios, pudores
Ante
o punhal radiante do desejo,
Palavra
ensurdecedora para a criatura dolorida em corpo e espírito
Pelas
terríveis mordeduras do amor,
Porque
o desejo se ergue dos despojos da tormenta
Quando
arde o sol nas praias do mundo.
Mas
o que importam a minha vida as praias do mundo?
É
essa somente que crava minha memória,
Porque
nela te vi cruzar, sombrio como uma negra aurora,
Arrastando
as asas de tua beleza
Sobre
sua dilatada curva, semelhante a um pomposo ramo
Aberto
sob a luz,
Com
sua armadura de altas rochas
Caídas
na direção das dunas de adelfas e palmas,
Em
lânguida paragem do preguiçoso sul.
Ainda
veem meus olhos as salinas de rosadas águas,
Os
leves moinhos de vento
E
aqueles pequenos corpos escuros,
Parcimoniosamente
moventes,
Junto
aos touros fulvos,
Transportando
os lunáticos blocos de sal
Sobre
as vagonetas, tristes como tudo o que pertence aos trabalhos da terra,
Até
as largas barcas resvaladiças sobre o peito do mar.
Quem
poderia viver na terra
Se
não fosse pelo mar.
Quantas
vezes te vi,
Acariciados os ligeiros
tornozelos pelo amplo círculo de tuas calças de marinheiro,
O peito e os ombros
dilatados sobre a harmoniosa cintura,
Coberto voluptuosamente
de lã azul como de hera.
O desdém esculpido
sobre os duros lábios.
Anegar-te frente ao mar
em uma contemplação
Mais funda que a do
homem frente ao corpo que ama.
Oscilantes sentimentos
nos enlaçam com este ou aquele corpo,
E todos eles não são
senão sombras que velam
A forma suprema do
amor, que por si mesmo pulsa,
Cego ante as mudanças
dos corpos,
Iluminado pelo ardor de
sua própria chama invencível.
Eu te adorava como
ideal de todo corpo belo,
Sem véus que mudassem a
recôndita imagem do amor;
Mais que o mesmo amor,
mais, me ouves?
Insaciável como tu
mesmo,
Inesgotável com tu
mesmo;
Ainda sabendo que o mar
era o único ser da criação digno de ti
E teu corpo o único
digno de sua inumana soberba.
Era o entardecer. As
aves do dia
Fugiram ante o furtivo
pensamento da sombra.
Os homens descansavam
em suas cabanas,
Entre a mulher e os
filhos,
Desnudos os pés sob a
luz funeral do acetileno,
Espreitando o sonho em
seus leitos junto ao mar;
Como se não pudessem
dormir distantes do que os faz viver
E do que os faz morrer.
Um grande silêncio, uma
grande calma
Dava com sua presença o
mar;
Mas também pulsava pelo
ar adormecido e fresco de letal anoitecer
Um medo escuro
A não se sabe que
pálidos gigantes,
Donos de cinzentas
serpentes e negros hipocampos,
Abrindo as sombrias
águas,
Em luta seus membros
retorcidos com rebeldes potentes animais do abismo.
As barcas, como leves
espectros,
Surgiam lentamente da
areia sonolenta,
Voluptuosos corpos
tíbios,
Com a graça do animal
que sabe voltar os olhos implorantes
Para as mãos de seu
dono, repletas de proteção e carícias,
E pensa tristemente que
se distanciam sem poder retê-las.
Não a essas horas,
Não a essas horas de
trégua covarde,
Ao amanhecer é quando
devias ir ao mar, jovem marinheiro,
Desnudo como uma flor;
E então é quando devias
amá-lo, quando o mar devia possuir-te,
Corpo a corpo,
Até confundir sua vida
com a tua
E despertar em ti seu
imenso amor
O breve espasmo de teu
prazer submetido,
Desposados um com o
outro,
Vida com vida, morte
com morte.
E uma vez, como rosa
abandonada,
Flutuou teu corpo,
apenas deformado pelas nupciais carícias do mar,
Mais pálidos os lábios,
o mesmo que se houvessem dado passo
A toda sua paixão, a
ave da vida;
Igualmente belo assim,
jovem marinheiro,
Pungentemente triste
com tua beleza inabitada,
Como quando irisavas a
vida com teus membros melodiosos.
Transformam-se as
vidas, mas a morte é única.
Ainda ouço aquela voz
exangue, que em seu vago delírio
Chegou até a mim,
através das velas caídas na areia, como asas arrancadas;
Alguém que conhecia tua
ausência, porque seus olhos te viram morto, tal uma rosa
[abandonada sobre
o mar,
Dizia lentamente: “Era
mais ligeiro que a água”.
Que desertos os homens,
Como chocam sem se ver
uns aos outros suas frontes de vergonha,
E quão doce será rodar,
igual a tu, do outro lado, no esquecimento.
Assim tua morte
desperta em mim o desejo da morte,
Como tua vida
despertava em mim o desejo da vida.
***
Yannis Tsarouchis
EL JOVEN MARINO
Luis Cernuda
El mar, y nada más.
Insaciable, insaciable.
Con pie desnudo ibas
sobre la olvidadiza arena,
Dulcemente trastornado,
como el hombre cuando un placer
espera,
Tu cabello seguía la
invocación frenética del viento;
Todo tú vuelto
apasionado albatros,
A quien su trágico
desear brotaba en alas,
Al único maestro
respondías:
El mar, única criatura
Que pudiera asumir tu
vida poseyéndote.
Tuyo sólo en los ojos
no te bastaba,
Ni en el ligero abrazo
del nadador indiferente;
Lo querías aún más:
Sus infalibles labios
transparentes contra los tuyos ávidos.
Tu quebrada cintura
contra el argínteo escudo de su
vientre,
Y la vida escapando,
Como sangre sin cárcel,
Desde el fatal olvido
en que caías.
Ahí estás ya.
No puedes recordar,
Porque ahora tú mismo
eres quieto recuerdo;
Y aquella remota
belleza.
En tu cuerpo cifrada
como feliz columna,
Hoy sólo alienta en mí,
En mí que la revivo
bajo esta oscura forma,
Que cuando tú vivías
Sobre un ara invisible
te adivinaba erguido.
No te bastaba
El sol de lengua
ardiente sobre el negro diamante de
tu piel,
A lo largo de tantas
lentas mañanas, ganadas en ocio
celeste,
Llenas de un áureo
polen, igual que la corola de alguna
flor feliz,
De reposo divino,
divina indiferencia;
Caído el cuerpo
flexible y seguro, como un arma mortal,
Ante la gran criatura
enigmática, el mar inexpresable,
Sin deseo ni pena,
igual a un dios,
Que sin embargo hubiera
conocido, a semejanza del hombre,
Nuestros deseos
estériles, nuestras penas perdidas.
Mira también hacia lo
lejos
Aquellas oscuras
tardes, cuando severas nubes,
Denso enjambre de
negras alas,
Silencio y zozobra
vertían sobre el mar;
Y en tanto las gaviotas
encarnaban la angustia del aire
invadido por la tormenta,
Recuérdale agitado, al
mar, sacudiendo su entraña,
Como demente que
quisiera arrancar en la luz
EI núcleo secreto de su
mal,
Torciendo en olas su
pálido cuerpo,
Su inagotable cuerpo
dolido,
Trastornado ante tu
amor, también inagotable,
Sin que pudieras llevar
sobre su frente atormentada
La concha protectora de
una mano.
Las gracias vagabundas
de abril
Abrieron sus menudas
hojas sobre la arena perezosa.
Una juventud nueva
corría por las venas de los hombres
invernales;
Escapaban timideces,
escalofríos, pudores
Ante el puñal radiante
del deseo,
Palabra ensordecedora
para la criatura dolida en cuerpo
y espíritu
Por las terribles
mordeduras del amor,
Porque el deseo se yergue
sobre los despojos de la tormenta
Cuando arde el sol en
las playas del mundo.
Mas ¿qué importan a mi
vida las playas del mundo?
Es ésta solamente quien
clava mi memoria,
Porque en ella te vi
cruzar, sombrío como una negra
aurora,
Arrastrando las alas de
tu hermosura
Sobre su dilatada
curva, semejante a una pomposa rama
Abierta bajo la luz,
Con su armadura de
altas rocas
Caída hacia las dunas
de adelfas y de palmas,
En lánguido paraje del
perezoso sur.
Aún ven mis ojos las
salinas de sonrosadas aguas,
Los leves molinos de
viento
Y aquellos menudos
cuerpos oscuros,
Parsimoniosamente
movibles,
Junto a los bueyes
fulvos,
Transportando los
lunáticos bloques de sal
Sobre las vagonetas,
tristes como todo lo que pertenece a
los trabajos de la tierra,
Hasta las anchas barcas
resbaladizas sobre el pecho del
mar.
Quién podría vivir en
la tierra
Si no fuera por el mar.
Cuántas veces te vi,
Acariciados los ligeros
tobillos por el ancho círculo de
tu pantalón marino,
El pecho y los hombros
dilatados sobre la armoniosa cintura,
Cubierto
voluptuosamente de lana azul como de yedra,
El desdén esculpido
sobre los duros labios,
Anegarte frente al mar
en una contemplación
Más honda que la del
hombre frente al cuerpo que
ama.
Cambiantes sentimientos
nos enlazan con este o aquel
cuerpo,
Y todos ellos no son
sino sombras que velan
La forma suprema del
amor, que por sí mismo late,
Ciego ante las mudanzas
de los cuerpos,
Iluminado por el ardor
de su propia llama invencible.
Yo te adoraba como
cifra de todo cuerpo bello,
Sin velos que mudaran
la recóndita imagen del amor;
Más que al mismo amor,
más, ¿me oyes?,
Insaciable como tú mismo.
Inagotable como tú
mismo;
Aun sabiendo que el mar
era el único ser de la creación
digno de ti
Y tu cuerpo el único
digno de su inhumana soberbia.
Era el atardecer. Las
aves del día
Huyeron ante el furtivo
pensamiento de la sombra.
Los hombres descansaban
en sus cabañas,
Entre la mujer y los
hijos,
Desnudos los pies bajo
la luz funeral del acetileno,
Acechando el sueño en
sus yacijas junto al mar;
Como si no pudieran
dormir lejos de lo que les hace
vivir
Y de lo que les hace morir.
Un gran silencio, una
gran calma
Daba con su presencia
el mar;
Pero también latía por
el aire adormecido y fresco del
letal anochecer
Un miedo oscuro
A no se sabe qué
pálidos gigantes,
Dueños de grisáceas
serpientes y negros hipocampos,
Abriendo las sombrías
aguas,
En lucha sus miembros
retorcidos con rebeldes potencias
animales del abismo.
Las barcas, como leves
espectros,
Surgían lentamente
desde la arena soñolienta,
Voluptuosos cuerpos
tibios,
Con la gracia del
animal que sabe volver los ojos implorantes
Hacia las manos de su
dueño, dispensadoras de protección
y de caricias,
Y piensa tristemente
que se alejan sin poder retenerlas.
No a estas horas,
No a estas horas de
tregua cobarde,
Al amanecer es cuando
debías ir hacia el mar, joven
marino,
Desnudo como una flor;
Y entonces es cuando
debías amarle, cuando el mar debía
poseerte,
Cuerpo a cuerpo,
Hasta confundir su vida
con la tuya
Y despertar en ti su
inmenso amor
El breve espasmo de tu
placer sometido,
Desposados el uno con
el otro,
Vida con vida, muerte
con muerte.
Y una vez, como rosa
dejada,
Flotó tu cuerpo, apenas
deformado por las nupciales
caricias del mar,
Mas pálidos los labios,
lo mismo que si hubieran dado
paso
A toda su pasión, el
ave de la vida;
Igualmente hermoso así,
joven marino,
Desgarradoramente
triste con tu belleza inhabitada,
Como cuando tornasolaba
la vida tus miembros melodiosos.
Cambian las vidas, pero
la muerte es única.
Aún oigo aquella voz
exangüe, que en su vago delirio
Llegó hasta mí, a
través de las velas caídas en la arena,
como alas arrancadas;
Alguien que conocía tu
ausencia, porque sus ojos te
vieron muerto, tal una rosa abandonada sobre
el mar,
Decía lentamente: “Era
más ligero que el agua.”
Qué desiertos los
hombres,
Cómo chocan sin verse
unos a otros sus frentes de vergüenza,
Y cuán dulce será
rodar, igual que tú, del otro lado, en
el olvido.
Así tu muerte despierta
en mí el deseo de la muerte,
Como tu vida despertaba
en mí el deseo de la vida.