sábado, 16 de maio de 2020

Confinamento - escrito em parceria com André Setti



Lucian Freud

A fronteira agora é o corpo
esse velho arcabouço
de onde aflora a face
do que não se nomeia

O limite agora é o corpo
que soletra o silêncio das paredes
dos espelhos sem rosto
do quarto desabitado
da sala vazia
sussurro que ilumina
além de toda palavra

O corpo
esse pêndulo de assombros
em que o exílio é asa para o nada
viagem entre o abismo
e a floração dos incêndios


Alexandre Bonafim e André Setti

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Um poema de Homero Aridjis





EL CABALLO que viene como fuego
caballo     musica de chispas
bebedor de distancia        relámpago murado

el caballo
fantasma o sol del instante que acaba

el caballo que vuela sobre el suelo

el caballo que arde
em la velocidade ritual de la animalia

el sol lo encuentra corriendo por el alba
ágil como un poema

***

O cavalo que vem como fogo
cavalo        música de chispas
bebedor de distância         relâmpago murado

O cavalo
fantasma ou sol do instante que acaba

O cavalo que voa sobre o solo

O cavalo que arde
na velocidade ritual da animália

o sol o encontra correndo pela alba
ágil como um poema

Livre tradução de Alexandre Bonafim

Imagem: kyoko Yoshida

In: ARIDJIS, Homero. Antología poética. Cidade do México: Fondo de Cultura Economica, 2009.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

NOITE DE DIONISO, de Alexandre Bonafim por Leonardo Davino de Oliveira




Se Hilda Hilst recria Ariadne, filha de Pasífae, abandonada por Teseuem Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio, do livro Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974); por sua vez, Alexandre Bonafim, sem mencionar, parece recriar Ampelo, rapaz que teria sido o primeiro amor do deus todo-só-riso, para compor o livro Noite de Dioniso (2019): Habitar-te / em tudo o que és / até onde jamais fostes/ e nascer de teu ventre/ como a sílaba primeiro/ de teu riso// Morar em ti/ como quem escalpela/ a face contra espinhos”, escreve Bonafim no poema “CASA”Podemos ler Ampelo como o eu-bacante que fala no livro, o menino ariano com ascendência em leão”.
A escolha de Alexandre pelo nome Dioniso clássico, ao invés do Dionísio mais popularizado, indica a restituição de um período helenístico que está na base de seu trabalho. Alexandre ergue, esculpe Dioniso. Labirinto/ que se aborta em labirintos/ para renascer/ no puro nada”, ou sonho a resvalar pelo útero de outro sonho”, Dioniso engendra eu-poemático. Mas este guarda um trunfo: a voz, o canto, o poema sem o qual Dioniso inexiste. É esta relação simbiótica clássica entre poeta e ins-piraçãofraturada na modernidade, que Alexandre recompõe. Mais como um canto de espelhamento/refração de si no outro, e menos como subalternidade. “Paixão e veemência” movem os possuídos no/pelo texto.
Evoco Ampelo para tratar da poesia de Bonafim porque há um ethos homoerótico que marca a subjetividade da persona poética do livro Noite de Dioniso. Seja no uso recorrente dos verbos no infinitivo; seja nas sugestões ao falo alucinógeno e impositivo, “vertical e vitorioso de Dioniso – que “abre um deserto / nas entranhas”; seja na fixação pelos pés, “cujas raízes/ são a própria queda” e remete-nos aos pés dos sátiros com quem Ampelo dançava e enciumava Dioniso; seja nos pronomes no masculino dos poemas: “dois felinos/ violentados/ pelo vício.
Descendentes de Zeus, Dioniso é embriaguez (o conteúdo, a esfera acústica); Apolo é o uso da embriaguez (a forma, o modo de dizer). Possuído por/de Dioniso, da alienação de si, Bonafim convoca Apolo, que responde pela aparência com que o eu-dos-poemas canta e se apresenta. Não é à toa que Ampelo emanava luz de seu corpo, e que nos poemas de Bonafim “tudo é sempre meio-dia”, apesar do título do livro. O jogo erótico é praticado às claras, “na luz de tua boca, na “súbita aparição do meio-dia”, nos teus pés límpidos entre a luz dos lírios, do eu-poemático, do deus que se instala feito um posseiro no coração (na ânima) deste eu que Alexandre burila e apresenta entre redondilhas, ou seja, em textos próprios para a fala, o canto, a voz. Porque assim como a Ariana de Hilst disse “(...) o teu corpo existe porque o meu/ Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,/ É que move o grande corpo teu”, Bonafim compreende que o possuído fala: Dá-me tua boca / para eu escrever a palavra”, escreve em “ESTA A HORA VIOLENTA”.
Se Dionísio se deliciara quando rolava com Ampelo em jogos eróticos, o eu-poemático de Bonafim afirma “nasci para afagar/ o movimento apenas/ o gesto antes da mão/ o sorriso antes da boca/ o branco antes da palavra”, num plano metalinguístico – homem a cair/ dentro de si mesmo”o abismo/ cordão umbilical/ a soterrá-lo / dentro de si mesmo”; “onde um pássaro / voa dentro de si mesmo – do fazer poético que põe em dúvida se quem canta é Dioniso ou Ampelo; o posseiro ou o possuído: “tua saliva / hemorragia”É nesta mistura de lucidez, “paixão e veemência” própria da embriaguez que a poesia se engenha.
Claro, no mito, o deus sempre vence. Dioniso se impõe e possui. Morto por um touro atiçado por SeleneAmpelo faz Dioniso chorar, algo que sua natureza não permitia. Morto, Ampelo é transformado na videira. E da relação entre vinho, sangue e Dioniso todos sabemos. Estáfilo, “cacho de uva”, é o nome de um dos filhos atribuídos a Dioniso e Ariadne, por exemplo. Bonafim bebe, faz o pacto. E a noite do título remete-nos a este gesto. O Ampelo do poeta, assim como Dioniso, age “Vertical como o dia” e “caminha[s] desnudo/ mastro a sustentar/ o voo dos pássaros”, do mesmo modo que a poesia sustenta o desejo, o sonho, a posse
Afinal da leitura do livroou antes, quando um poema diz O sol escorre de teu dorso/ transborda o dia/ em tudo o que ésperguntamo-nos se quem fala é Ampelo, ou Dioniso, espantado com a beleza do “jovem encantado, isto é, Dioniso em estado de noite, bebendo do próprio vinho. Neste sentido, quem diz “nasci dessa boca/ capaz de nomear/ o inferno”Ampelo? Dioniso? Eis a febril ambiguidade – “um colibri de água”; e “uma guirlanda / de incêndios” – do livro de Alexandre Bonafim.

sábado, 2 de maio de 2020

A casa


I
A casa fala
a áspera
língua
do cárcere

A casa canta
o vazio
do labirinto

A casa fratura
os ossos
contra o silêncio



II

Um pássaro esfacelado
contra a parede

Um pássaro estilhaçado
contra o espelho

Um pássaro fraturado
contra a palavra


III

Um pássaro
de amputada língua
a cantar para dentro de si
a cantar do âmago do sangue
cárcere de palavras e ossos


IV

Um pássaro cego a debater-se
contra as paredes da própria entranha
contra as grades da palavra

V

A casa
ninho de espinhos
onde adormece
o delicado pássaro
recém-nascido

Alexandre Bonafim

Imagens: Mike Beeman


CONSIDERAÇÕES SOBRE A NOITE DE DIONISO

Ritchelly Oliveira      “   O amor é o servo da loucura’, ‘o ferreiro dos que erram’, o ‘verme importuno’, a ‘doença dos sentidos’, a ‘embri...