Se Hilda Hilst recria Ariadne, filha de Pasífae, abandonada por Teseu, em Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio, do livro Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974); por sua vez, Alexandre Bonafim, sem mencionar, parece recriar Ampelo, rapaz que teria sido o primeiro amor do deus todo-só-riso, para compor o livro Noite de Dioniso (2019): “Habitar-te / em tudo o que és / até onde jamais fostes/ e nascer de teu ventre/ como a sílaba primeiro/ de teu riso// Morar em ti/ como quem escalpela/ a face contra espinhos”, escreve Bonafim no poema “CASA”. Podemos ler Ampelo como o eu-bacante que fala no livro, o “menino ariano com ascendência em leão”.
A escolha de Alexandre pelo nome Dioniso clássico, ao invés do Dionísio mais popularizado, indica a restituição de um período helenístico que está na base de seu trabalho. Alexandre ergue, esculpe Dioniso. “Labirinto/ que se aborta em labirintos/ para renascer/ no puro nada”, ou “sonho a resvalar pelo útero de outro sonho”, Dioniso engendra o eu-poemático. Mas este guarda um trunfo: a voz, o canto, o poema sem o qual Dioniso inexiste. É esta relação simbiótica clássica entre poeta e ins-piração, fraturada na modernidade, que Alexandre recompõe. Mais como um canto de espelhamento/refração de si no outro, e menos como subalternidade. “Paixão e veemência” movem os possuídos no/pelo texto.
Evoco Ampelo para tratar da poesia de Bonafim porque há um ethos homoerótico que marca a subjetividade da persona poética do livro Noite de Dioniso. Seja no uso recorrente dos verbos no infinitivo; seja nas sugestões ao falo alucinógeno e impositivo, “vertical e vitorioso” de Dioniso – que “abre um deserto / nas entranhas”; seja na fixação pelos pés, “cujas raízes/ são a própria queda” e remete-nos aos pés dos sátiros com quem Ampelo dançava e enciumava Dioniso; seja nos pronomes no masculino dos poemas: “dois felinos/ violentados/ pelo vício”.
Descendentes de Zeus, Dioniso é embriaguez (o conteúdo, a esfera acústica); Apolo é o uso da embriaguez (a forma, o modo de dizer). Possuído por/de Dioniso, da alienação de si, Bonafim convoca Apolo, que responde pela aparência com que o eu-dos-poemas canta e se apresenta. Não é à toa que Ampelo emanava luz de seu corpo, e que nos poemas de Bonafim “tudo é sempre meio-dia”, apesar do título do livro. O jogo erótico é praticado às claras, “na luz de tua boca”, na “súbita aparição do meio-dia”, nos “teus pés límpidos entre a luz dos lírios”, do eu-poemático, do deus que se instala feito um posseiro no coração (na ânima) deste eu que Alexandre burila e apresenta entre redondilhas, ou seja, em textos próprios para a fala, o canto, a voz. Porque assim como a Ariana de Hilst disse “(...) o teu corpo existe porque o meu/ Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,/ É que move o grande corpo teu”, Bonafim compreende que o possuído fala: “Dá-me tua boca / para eu escrever a palavra”, escreve em “ESTA A HORA VIOLENTA”.
Se Dionísio se deliciara quando rolava com Ampelo em jogos eróticos, o eu-poemático de Bonafim afirma “nasci para afagar/ o movimento apenas/ o gesto antes da mão/ o sorriso antes da boca/ o branco antes da palavra”, num plano metalinguístico – “homem a cair/ dentro de si mesmo”; “o abismo/ cordão umbilical/ a soterrá-lo / dentro de si mesmo”; “onde um pássaro / voa dentro de si mesmo” – do fazer poético que põe em dúvida se quem canta é Dioniso ou Ampelo; o posseiro ou o possuído: “tua saliva / hemorragia”. É nesta mistura de lucidez, “paixão e veemência” própria da embriaguez que a poesia se engenha.
Claro, no mito, o deus sempre vence. Dioniso se impõe e possui. Morto por um touro atiçado por Selene, Ampelo faz Dioniso chorar, algo que sua natureza não permitia. Morto, Ampelo é transformado na videira. E da relação entre vinho, sangue e Dioniso todos sabemos. Estáfilo, “cacho de uva”, é o nome de um dos filhos atribuídos a Dioniso e Ariadne, por exemplo. Bonafim bebe, faz o pacto. E a “noite” do título remete-nos a este gesto. O Ampelo do poeta, assim como Dioniso, age “Vertical como o dia” e “caminha[s] desnudo/ mastro a sustentar/ o voo dos pássaros”, do mesmo modo que a poesia sustenta o desejo, o sonho, a posse.
Ao final da leitura do livro, ou antes, quando um poema diz “O sol escorre de teu dorso/ transborda o dia/ em tudo o que és”, perguntamo-nos se quem fala é Ampelo, ou Dioniso, espantado com a beleza do “jovem encantado”, isto é, Dioniso em estado de noite, bebendo do próprio vinho. Neste sentido, quem diz “nasci dessa boca/ capaz de nomear/ o inferno”? Ampelo? Dioniso? Eis a febril ambiguidade – “um colibri de água”; e “uma guirlanda / de incêndios” – do livro de Alexandre Bonafim.