quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

CONSIDERAÇÕES SOBRE A NOITE DE DIONISO


Ritchelly Oliveira 

 

  O amor é o servo da loucura’, ‘o ferreiro dos que erram’, o ‘verme importuno’, a ‘doença dos sentidos’, a ‘embriaguez dos corações’, o ‘engenho inato’ e o assassinato da razão”.

Giambattiste Marino

 

Pela capa, assim se inicia a leitura de certos livros de poemas, incitando o leitor a possibilidades para além do conteúdo interior, e promovendo o jogo entre o referente e o referencial. Noite de Dioniso, de Alexandre Bonfim, dá-nos um exemplo disso. O autor consegue reunir no livro poemas e artes plásticas, duas linguagens que se complementam e enriquecem a leitura. Na imagem externa é apresentada a figura de um efebo, cuja parte superior do rosto é formada por pássaros de diferentes espécies, numa organização de elementos díspares; o dorso seccionado, como a se constituir em parte autônomo, amplia as possibilidades, e do espaço em branco flutuam forma circulares que se interseccionam formando espiral matizadas com alguns tons velados do arco-íris. Dentro do livro, entre os poemas, uma outra ilustração, de procedimento análogo, refere-se a um outro efebo, ladeado de flores deformadas, manchas escuras, figuras que criam ilusões visuais. Assim, os elementos visual e verbal se articulam entre si, e significativos símbolos da geometria milenar se unem de forma ambivalente ao arsenal metafórico das imagens de grande força erótica, sensorial e mítica, contribuindo para intensidade poética do livro.

Fica patente, desde a capa e a outra ilustração, já referida, a filiação criativa da obra ao universo da fantasia. As ilustrações, com certo sabor maneirista, visto que compartilham mais de um procedimento com antiga escola de pintura, não são indicativos de que a obra é composta de poemas maneiristas, pois não o é, embora em um dos poemas haja também um jogo paradoxal de palavras, semelhante ao usado pelos poetas maneiristas como citaremos posteriormente.

O poeta, já no primeiro poema, “Nudez”, busca “clarificar os objetos/adensando-os/ em pura fantasia ”, para perceber a sua “intensa presença”, como a buscar uma via de descoberta pelos caminhos da fantasia, pelos quais tudo se torna possível, tangível. No mesmo poema surge o “espelho estilhaçado/ pela luz das flores”, num metaforizar constante, quebrar o espelho é destruir a imagem e transformá-la em buquê, e assim, vê-la de um outro viés, ou o espelho se quebrou com a luz das flores, ou seja, a imagem delas é que são os estilhaços? Todos os poemas são fortemente metafóricos, criando ambiguidades, abrindo largo espaço para a imaginação.

Seria um trabalho malogrado buscar entender exatamente os poemas de Bonafim, de um ângulo racional, pois as imagens cortantes, a polaridade entre nudez e hermetismo indicam que a Noite de Dioniso é a sagração dos mistérios, da magia, da sensualidade “francamente” aberta, pertence ao reino das imagens vistas com olhos de vinho, inebriadas pelo erotismo, como se a posse da nudez revelasse a sua impossibilidade sugerida em muitas das imagens, pois a dor e a suavidade atravessam todos os textos, indicando que o objeto almejado pode ser alcançado, talvez, somente pela arte e a fulguração das imagens, sob as bênçãos de um deus fictício, tornando a tentativa de posse mais problemática.

Noite de Dioniso forma um labirinto de sentidos, expressos pelos diferentes símbolos que se remetem tanto à leveza – o colibri, como ao rústico – o búfalo, e o leão em sua simbologia de força solar, igualmente outros símbolos, os quais, para o entendimento de seus sentidos nesta obra, demandaria um estudo extenso, já que alguns deles ganham novos sentidos, ou são erotizados, “Um búfalo/ contra o sol, / o rapaz desnudo”. Além desse, o leão e o cavalo se apresentam com toda maciça virilidade, para além do animal, metamorfoseados.

Além do manejo competente de símbolos, e seres mitológicos, chama a atenção em toda obra o intenso erotismo homoafetivo, pois não se trata de um o outro texto, como sói comum acontecer em outras obras, mas o livro inteiro é dedicado a essa forma de amar que pode implicar tanto em prazer como em sofrimento, em desejo e dor, por isso, imagens como: “com ímpeto selvagem/ esse animal apunhala/ meu corpo/ meus sonhos/os nomes todos de minha agonia”“ardoroso desejo flecha a cravar-me/ no martírio do meu sangue” dentre tantos outros exemplos, dão bem a medida da intensidade erótica do livro, já que a força sexual, uma das mais poderosas da natureza, aqui se coaduna a um objeto mais específico: a beleza do jovem desnudo cantado em toda a sua verdade humana, mas também violenta, dionisíaca: “Gosto de amar assim/como quem mastiga/carne crua/como quem tritura/ sem piedade nem dentes/ lâmina atroz”,  poema: “A arte de amar”.

É curioso que o livro se intitula Noite de Dioniso, mas os poemas em quase toda a sua totalidade são solares, marcados pelo brilho. Possivelmente seja essa noite a do enígma, do labirinto, do sentido mágico de que a vida está imbuída, em umas últimas palavras, do dentro que se manifesta em metáforas.

Outra característica que chama a atenção, o substantivo “amor”, o “terrible e suave” de acordo com Leonardo da Vinci, só aparecerá nos poemas finais, a partir da página 75, mas, como não poderia deixar de ser, no sentido carnal, embora possa conotar   possível união de desejo erótico e do amor, assim, a palavra flecha, presente no referido poema e em alguns outros do livro, pode ser lida como metonímia de Cupido.

O atento trabalho com a linguagem e a escolha das palavras, organizadas em verso curtos, dando um tom mais incisivo à proposta das imagens cultivadas pelo poeta, são notáveis, como nos versos “sobre meu peito/o teu peito/ Duas pedras/ agudas/ a ferir-me”. Poder-se-ia retirar vários exemplos como estes em toda obra. No poema “Teus pés” dividido em sete partes, percebemos o engenhoso trabalho com a linguagem: o pronome e o substantivo vão mudando de posição nos dísticos que compõem a série inicial, aludindo a passos, e as imagens dos pés, em um momento, terrenas, adquirem certo voo: “Teus pés iluminados sobre a relva”. Assim os pés tornam-se símiles de asas. Referente, ainda, à construção dos versos, há no poema “Descrição do Desejo” algumas linhas paradoxais que lembram a poesia maneirista. Este recurso é utilizado unicamente nesse poema: “Cântaro/ que cheio/nunca se completa/ que repleto/sempre se ausenta/ Fruto que maduro/nunca é pleno”.

A escolha possivelmente planejada de certas palavras, como no caso do adjetivo “vertical”, além de sugerir a ascensão, a divinização do objeto cantado, pode receber outra significação, pois é usado tanto no início de uma linha de poema, ou junto a outras palavras, parece indicar um sentido fálico, uma ereção, já que aparece reiteradamente em alguns poemas. Esse trabalho com as palavras não é um recurso isolado, acontece em outros versos um uso semelhante, também com fonemas que atuam por dentro da imagem: “Beleza dos teus pés/esculpidos pelo pólen. Observa-se que a oclusiva bilabial surda “p” está distribuída nos versos como a suavizar os passos e repercutindo o substantivo “pé”, quase dando a ideia de um andar felino. 

Enfim, como se pode perceber no tom dessas considerações, trata-se da leitura pessoal de um leitor curioso e sem a pretensão de explicar os poemas, pois, se assim o fosse seria improdutivo tal pleito, já que, como se sabe, é quase jargão que “poesia não se explica, sente-se”

 

Edmar Guimarães

Poeta.

 

 

Referências:

HOCKE, R. Gustav, O maneirismo: o mundo como labirinto

BONAFIM, Alexandre, Noite de Dioniso.

 

 

 

 

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Afortunado


Foto colagem de Alexandre Bonafim

Afortunado o homem que desperta

junto a um trintão com barba de ouro

ao que se admira

pela doçura de seus dons,

e por sua integridade e pelo gesto

sereno com que afronta o pequeno e o grande.


Afortunado o homem que chama companheiro

ao que compartilha tudo com ele, em um golpe

de amor que repercute em toda sua existência.

Outros no futuro se amarão como eles.


Afortunado o que pode afirmar que confia.

O que habita junto a um valente.

O que está protegido pela força próxima

e recebe de pronto um olhar seu.

Ainda que sejam vulneráveis, já são invulneráveis.


Afortunado o homem que caminha junto a um jovem risonho.

***


Afortunado el hombre que despierta

junto a un treintañero con la barba de oro

al que admira

por la dulzura de sus dones,

y por su integridad y por el gesto

sereno con que afronta lo pequeño y lo grande.

  

Afortunado el hombre que llama compañero

al que comparte todo con él, en un golpe

de amor que repercute en toda su existencia.

Otros en el futuro se amarán como ellos.

  

Afortunado el que puede afirmar que confía.

El que habita junto a un valiente.

El que está protegido por su fuerza cercana

y recibe de pronto una mirada suya.

Aunque son vulnerables, ya son invulnerables.

 

Afortunado el hombre que camina junto a un joven risueño.

 ***

Juan Antonio Gonzalez Inglesias

Do livro Confiado, editora Visor Libros

Tradução de Alexandre Bonafim



sábado, 10 de outubro de 2020

ODE - Luis Cernuda

 

kris knight


 



A tristeza sucumbe, nuvem impura,

Distanciando seu voo sombrio

Resplendor indolente, languidesce,

Perdendo-se ao longe, leve, escura.

O furor implacável do estio

Toda a vida esplêndida estremece

E profunda a oferece

Com suas felizes horas,

Seus sóis, suas auroras,

Delirante, azulado torvelinho.

Desde a luz, o mais puro caminho,

Com o fulgor que pisa competindo

Vivo, belo e divino,

Um jovem deus avança sorrindo.



A que céu natal alheio, ausente

Nega-lhe essa imortal presença esquiva

Esse contorno tibiamente pleno?

De mármore animado, quer e sente,

Imóvel, mas trêmulo, aviva-se

Ao sopro de um purpúreo desejar pleno.

O desenho sereno

Da nudez tão pura,

Em um reflexo duro,

E levantando o vulto prodigioso

Do sonho remoto onde jaz,

Destino poderoso,

À força suprema firme nasce.



Mas é um deus? O amanhã parece

Romper de sua atitude a pura calma

Com um gesto de muda melodia,

Que logo, suspenso, não perece;

Silencioso, mas vivido, com alma,

Mantém sucessiva sua harmonia.

O deus que transluzia

Agora esquecido jaz;

Eco seu, renasce

O homem que nenhuma nuvem zela

A formosura diáfana não vela

Já a atração humana ante o sentido;

E sua forma revela

Um mundo eternamente pressentido.



Que prodigiosa forma palpitante

Corpo perfeito no vigor primeiro,

Em sua plena beleza tão humano.

Alçado seu contorno triunfante,

Sólido, sim, mas ágil e ligeiro,

Abre a vida imensa ante sua mão

Todo o horror em vão

A essa firmeza inteira

Com suas sombras quisera

Derrubar de tão fúlgida harmonia.

Mas, aço obstinado, só fia

Em si mesmo esse orgulho tão altivo;

Claramente se guia

Com potência admirável, livre e vivo.



Quando a força bela, a destreza

Desdobra na amorosa empresa ingrata

O corpo; quando trêmulo suspira;

Quando no sangue, oculta fortaleza

O amor possesso se desata,

O lábio com afã ávido aspira

A graça que respira

Uma forma indolente;

Sob seu braço sente

Outro corpo de lânguida brancura

Distendido, oferecendo sua ternura,

Como cisne mortal entre o sombrio

Verdor da espessura

Que ama, canta e sucumbe em desvario.



Mas os tristes cuidados amorosos

Que obstinadamente a paixão reclama

De quem sua vida em outras mãos deixa,

O terno lamentar, os exasperados

Tédios escondidos daquele que ama

E tantas lentas lágrimas de queixa,

O azar firme distancia

Deste corpo sereno;

A seu rigor tão pleno

A liberdade convém somente,

Não o cuidado veemente

Das terríveis e fugazes glórias

Que o amor mais ardente

Encontra enfim depois de suas débeis vitórias.



Assim em seu lábio enamorado nasce

Sorriso luminoso, dilatando

Pelo viril semblante a alegria

Em bela destreza

Que pelos tensos músculos remove.

E a margem próxima, a água leve,

A forma atrás de sua estranha imagem salta,

Relâmpago de neve

Sob a luz difusa tão alta.



Sorridente, adormecida sob o céu,

Sorria a água e transcorria lenta,

Idêntica a si mesma e fugitiva.

Mas em tumulto alçando-se, em revoo

Da rota espuma, ao nadador ostenta

Leve em sua fuga

E a forma se aviva

Com reflexos de prata;

Ata o rio e desata,

Em transparente laço mal seguro,

Aquele rumo veloz entre seu escuro

Anseio já transposto em diamante.

A luz, esplendor puro,

Cálida envolve ao corpo como amante.



Um frescor sossegado se levanta

Rumo às folhas do verde rio

E em invisível voo se dilui.

A sombra misteriosa já suplanta,

Entre o pequeno bosque ávido e sombrio,

À luz tão diáfana que foge

E a corrente flui

Com seu rumor sereno

Do trinar que algum pássaro desvela.

O belo corpo em pé, desnudo zela,

Sob o ramo espesso, entretecido

Com difícil tela,

Sua ofuscante neve estremecida.

Oh novo deus. Com deslumbrante brio

Ao crepúsculo volta vagaroso

Sua preguiçosa graça sedutora.

Todo o fúlgido encanto do estio

O fatigado bosque rumoroso

Em repouso vazio o evapora.

Vã e feliz, a hora

Ao sabor indolente

Se abandona; não sente

Sua silenciosa e lânguida beleza.

Pela cintilante trama escura

Foge o corpo feliz quase em um voo,

Deixando a espessura

Pela delícia púrpura do céu.






Oda



La tristeza sucumbe, nube impura,

alejando su vuelo con sombrío

resplandor indolente, languidece,

perdiéndose a lo lejos, leve, oscura.

El furor implacable del estío

toda la vida espléndida estremece

y profunda la ofrece

con sus felices horas,

sus soles, sus auroras,

delirante, azulado torbellino.

Desde la luz, el más puro camino,

con el fulgor que pisa compitiendo,

vivo, bello y divino,

un joven dios avanza sonriendo.



¿A qué cielo natal ajeno, ausente

le niega esa inmortal presencia esquiva,

ese contorno tibiamente pleno?

De mármol animado, quiere y siente;

inmóvil, pero trémulo, se aviva

al soplo de un purpúreo anhelar lleno.

El dibujo sereno

del desnudo tan puro,

en un reflejo duro,

con sombra y luz acusa su reposo.

Y levantando el bulto prodigioso

desde el sueño remoto donde yace,

destino poderoso,

a la fuerza suprema firme nace.



Pero ¿es un dios? El ademán parece

romper de su actitud la pura calma

con un gesto de muda melodía,

que luego, suspendido, no perece;

silencioso, mas vivido, con alma,

mantiene sucesiva su armonía.

El dios que traslucía

ahora olvidado yace;

eco suyo, renace

el hombre que ninguna nube cela.

La hermosura diáfana no vela

ya la atracción humana ante el sentido;

y su forma revela

un mundo eternamente presentido.



Qué prodigiosa forma palpitante,

cuerpo perfecto en el vigor primero,

en su plena belleza tan humano.

Alzando su contorno triunfante,

sólido, sí, mas ágil y ligero,

abre la vida inmensa ante su mano.

Todo el horror en vano

a esa firmeza entera

con sus sombras quisiera

derribar de tan fúlgida armonía.

Pero, acero obstinado, sólo fía

en sí mismo ese orgullo tan altivo;

claramente se guía

con potencia admirable, libre y vivo.



Cuando la fuerza bella, la destreza

despliega en la amorosa empresa ingrata

el cuerpo; cuando trémulo suspira;

cuando en la sangre, oculta fortaleza,

el amor desbocado se desata,

el labio con afán ávido aspira

la gracia que respira

una forma indolente;

bajo su brazo siente

otro cuerpo de lánguida blancura

distendido, ofreciendo su ternura,

como cisne mortal entre el sombrío

verdor de la espesura,

que ama, canta y sucumbe en desvarío.



Mas los tristes cuidados amorosos

que tercamente la pasión reclama

de quien su vida en otras manos deja,

el tierno lamentar, los enojosos

hastíos escondidos del que ama

y tantas lentas lágrimas de queja,

el azar firme aleja

de este cuerpo sereno;

a su vigor tan pleno

la libertad conviene solamente,

no el cuidado vehemente

de las terribles y fugaces glorias

que el amor más ardiente

halla en fin tras sus débiles victorias.



Así en su labio enamorada nace

sonrisa luminosa, dilatando

por el viril semblante la alegría.

Y la antigua tristeza ya deshace,

desde el candor primero gravitando,

la amargura secreta que nutría.

El cuerpo ya desvía

la natural crudeza

en hermosa destreza

que por los tensos músculos remueve.

Y a la orilla cercana, al agua leve,

la forma tras su extraña imagen salta,

relámpago de nieve

bajo la luz difusa de tan alta.



Sonriente, dormida bajo el cielo,

soñaba el agua y transcurría lenta,

idéntica a sí misma y fugitiva.

Mas en tumulto alzándose, en revuelo

de rota espuma, al nadador ostenta

ingrávido en su fuga a la deriva.

Y la forma se aviva

con reflejos de plata:

Ata el río y desata,

en transparente lazo mal seguro,

aquel rumbo veloz entre su oscuro

anhelar ya resuelto en diamante.

La luz, esplendor puro,

cálida envuelve al cuerpo como amante.



Un frescor sosegado se levanta

hacia las hojas desde el verde río

y en invisible vuelo se diluye.

La sombra misteriosa ya suplanta,

entre el boscaje ávido y sombrío,

a la luz tan diáfana que huye.

Y la corriente fluye

con su rumor sereno;

todo el cielo está lleno

del trinar que algún pájaro desvela.

El bello cuerpo en pie, desnudo cela,

bajo la rama espesa, entretejida

como difícil tela,

su cegadora nieve estremecida.



Oh nuevo dios. Con deslumbrante brío

al crepúsculo vuelve vagoroso

su perezosa gracia seductora.

Todo el fúlgido encanto del estío

el fatigado bosque rumoroso

en reposo vacío lo evapora.

Vana y feliz, la hora

al sopor indolente

se abandona; no siente

su silenciosa y lánguida hermosura.

Por la centelleante trama oscura

huye el cuerpo feliz casi en un vuelo,

dejando la espesura

por la delicia púrpura del cielo.





kris knight

***
Muitos críticos afirmam, em certos casos com razão, que os poetas iniciantes, às vezes imaturos, esboçam em seus livros de estreia, ou mesmo nos livros seguintes, num certo período inicial de sua obra, uma escritura em construção, uma falta ainda de maestria para ajustar a palavra ao seu eixo fundamental. Eu, como leitor, muitas vezes sou fisgado pela beleza ingênua de uma obra estreante, ou de uma fase dita "imatura" de um autor, e me deparo com textos de uma espontaneidade tão sedutora, de uma pureza tão arrebatadora. Isso aconteceu comigo ao ler Pablo Garcia Baena, Ricardo Molina, Hilda Hilst. Acho a Hilda Hilst de Trajetória poética do ser sublime. Há poetas, inclusive, que escrevem bem no início de suas carreiras e, depois, decaem. Perdem aquele frescor, aquele encantamento inusitado, surpresa da beleza sem máscaras. Em contrapartida, há poetas que já iniciam sua escrita nas alturas, revolucionando todo o cânone literário de uma época. Basta lembrarmos de Rimbaud que, muito jovem, erigiu uma obra assombradoramente revolucionária. 
Um caso peculiar é também o de Cernuda. Ao conviver, na juventude, em Sevilha, com outro grande poeta da geração de 27, Pedro Salinas, esse, mais velho e experiente, não soube reconhecer, na obra inicial do escritor de A realidade e o desejo, o ímpeto e vigor de um grande poeta. O mesmo Salinas, anos mais tarde, com estranhamento confessará que, na época, não se atentara para o fato de que estava diante de um dos maiores poetas do século XX. 
O livro de estreia de Cernuda foi duramente criticado por outros críticos que associaram sua escritura a uma transposição do estilo de Jorge Guillén. No entanto, passado o tempo, observo que a obra inicial de Cernuda guarda um frescor, uma ingenuidade, uma pureza capaz de nos arrebatar. 
Nesse poema, Ode, observamos, já latentes, as linhas de força que irão explodir em Os prazeres proibidos. Trata-se de um texto longo, escrito inicialmente em homenagem a um ator norte-americano do cinema mudo. A irrupção desse deus, esplendoroso, faz esmorecer toda a natureza, todo o cosmos, numa celebração erótica do corpo e do mundo, repletos de um êxtase celabratório da beleza.  Não irei me delongar com explicações sobre o poema. Deixo aqui um link de um blog, em que se pode encontrar uma análise bem detalhada. Enfim, o Cernuda de Ode é já o grande Cernuda, poeta que irá marcar toda a trajetória lírica da Espanha e do mundo. 

http://gonzalolloretprofesor.blogspot.com/2019/01/oda-de-egloga-elegia-oda.html 

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

O jovem persa de Mary Renault


 Alexandre, o Grande

Mary Renault, em seu romance The persian Boy, conseguiu realizar um feito admirável, ao coligar a força da criação poética, típica de seu gênio, à factualidade dos acontecimentos históricos. A força dessa junção entre historicidade e devaneio poético lega-nos uma obra surpreendente, ardente, flamejante, em imagens arrebatadoras e repletas de sugestão lírica.

            A história de Alexandre Magno, o grande imperador e conquistador da antiguidade, ganha, pelo traçado de Renault, realces capazes de torná-lo muito mais que mero personagem histórico, mas ser vivo, pulsante, repleto de vigor e existência. O impacto de tal verossimilhança é alcançado graças a um efeito narrativo de simplicidade e singeleza. Trata-se simplesmente do uso do foco narrativo em primeira pessoa, onisciente, o que nos faz contemplar toda a trama pelo impacto desse phatos atuante, vibrante. Esse narrador, integrante fundamental para o equilíbrio e êxito da trama, é Bagoas, o jovem persa, eromenos de Alexandre.

            O olhar de Bagoas é vibrante, febril, de uma força lírica pungente, porque ele nos narra os feitos do grande herói pelas cores, perfumes, sabores, texturas da emoção apaixonada. É esse arrebatamento fulgurante, essa comoção sempre terna, esse desvelo meigo em face daquele que o nomeia enquanto ser, daquele que lhe permite a plenitude do amor, que nós adentramos a viva carne das palavras, numa prosa em tudo repleta de força pictórica, de concretude verossímil, de passionalidade arrebatadora.   

            Dentre as várias passagens que nos chamam a atenção, destaco algumas, que pela exemplaridade da harmonia técnica no uso dos meios expressivos da linguagem merece ser rememorados e sublinhados. Começo pela passagem em que o jovem persa é castrado. Isso se dá logo nas primeiras páginas do livro. Tal acontecimento, terrível, nos coloca diante da singularidade desse jovem, transformado, pela força do destino, em um eunuco. Isso só faz sublinhar o caráter homoerótico da personagem e abre, em seu ser, uma transição de gênero, o que a torna, de certa maneira, andrógina. A terrível passagem em que se contempla esse momento é de uma concisão e elegância admiráveis. Tudo se passa com uma naturalidade, com uma rapidez que acaba por nos chocar. Acredito, inclusive, que a concisão proposta por Renault tem justamente esse princípio, ou seja, o de motivar pela descrição concisa o terror do próprio fato. Cito, aqui, o fragmento, em que a personagem nos narra suas emoções após o feito:

 “Dizem que as mulheres esquecem as dores do parto. Enfim, elas estão nas mãos da natureza. Mas nenhuma mão levou consigo a minha. Eu era apenas um corpo de dor numa terra e num céu de trevas. Será necessário a morte para que eu a possa esquecer” (pg. 14)

             Outra cena digna de destaque, clássica, é a passagem em que Alexandre resgata, de um sequestro, o seu cavalo Bucéfalo, Cabeça-de-boi na tradução portuguesa:


O velho cavalo ergueu o focinho e relinchou. [...] Ele começou a correr, [...] aproximou-se do rei encostou-se ao seu ombro.

O Rei afagou-lhe o focinho. Durante todo este tempo estivera mordiscando uma maçã e com ela o alimentou. Depois voltou-se com o rosto encostado ao seu pescoço. Percebi então que ele chorava. (pg. 117)

             Essa passagem só faz realçar o caráter ambivalente de Alexandre. Ele é um guerreiro, porém dotado de sentimentos, de uma ética, que o fazem um herói de natureza divina. Ele a todo momento se desvela em amor aos seus animais, o que lhe realça ainda mais o encantamento de sua natureza sedutora.

            A descoberta súbita do aguçado amor que Bagoas nutre por Alexandre também é um dos momentos pungentes do livro: 

A luz toca-lhe o coração. A concha abre-se.

Pensei, ali vai meu amo; nasci para o seguir. Encontrei um Rei.

E, disse para comigo, olhando-o enquanto ele se afastava, tê-lo-ei nem que para isso seja necessário perder a vida. (pg. 124)

            O que nos fica dessa obra monumental é a força genial de Mary Renault, sua coragem, sua sensibilidade, capazes de no tocar ao fundo. A autora inglesa, uma das grandes do século passado, legou-nos, assim, obras de grande maestria narrativa, obras monumentais, em que o heroísmo épico da antiguidade ganha a força passional da própria poesia.

 

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

PRESENÇA

 


Foto colagem de Alexandre Bonafim

O rapaz era tão belo, que não era deste mundo, 

era outro mundo ele somente, de flor e um feixe de veias. 

Olhavas para ele e era alheio, distante de ti, como um belo animal 

       [solto, 

em um universo verde de água e pradarias.   

Lançavas o olhar nele e o encontravas vivo, igual a ti, 

 mas pensavas que era uma flor, uma gazela, um junco, um lírio. 

Querias amá-lo, e resvalavas o olhar na flor da carne, 

e como olhas o que tem alma e veias e sentidos, 

o rapaz passava ante teus olhos de entrega, 

sem te ver, sem te olhar, dando morte ao teu mundo, com sua presença plena, 

para a que não existias...


Tradução de Alexandre Bonafim

Juan Barnier un: Poesía completa - Editorial Pré-textos

***

PRESENCIA

El muchacho era tan bello, que no era de este mundo,
Era otro mundo él solo, de flor y un manojo de venas.
Lo mirabas y era aparte, lejos de ti, como un bello animal suelto,
en un universo verde de agua y de praderas
ponías la mirada en él y lo encontrabas vivo, igual que tú,

pero pensabas que era una flor, una gacela con junco, un lirio.
Querías amarlo, y resbalaba la mirada en la flor de carne,
y como miras a lo que tiene alma y venas y sentidos,
el muchacho pasaba ante
tus ojos de entrega,
sin verte, sin mirarle, dando muerte a tu mundo,
con su presencia plena,
para la que no existías…

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Mãos de um adolescente obreiro


                                     Alexander Green


A um rapaz do meu bairro,

com quem coincidi

três vezes no ônibus.

 

Mãos vigorosas, fissuradas, sujas,

mãos ardentes e seguras

de um adolescente obreiro

que agora agarram, juntos às minhas,

a barra de um ônibus.

 

São tuas mãos tão belas, rapaz,

que apenas me contenho:

ásperas, curtidas, fortes.

Não parecem as mãos de um menino!

O que terão tocado?

O que teriam feito?

 

Humildes embora hábeis,

serenas mas enérgicas,

são as mãos do futuro

e da esperança.

Tão próximas estão de mim,

que quase me tocam,

e eu as queria beijar,

acariciar morbidamente e com veemência.

Ou, simplesmente, apertá-las contra mim

para sentir seu calor e sua segurança,

para desvelar outra vez suas experiências,

seus contatos mais impudicos,

suas aberrações mais secretas.

Seguir a pegada de tua infância:

de tudo aquilo que sentiram,

roçaram, possuíram,

desarmaram ou construíram,

em múltiplos trabalhos ou jogos,

tuas mãos.


De Pedro Menchén do livro Cantos de desesperación y amor

Tradução de Alexandre Bonafim


terça-feira, 2 de junho de 2020

O jovem marinheiro

Yannis Tsarouchis


O jovem marinheiro

Luis Cernuda
Tradução de Alexandre Bonafim

O mar, e nada mais.

Insaciável, insaciável.
Com pé desnudo caminhavas sobre esquecida areia,
Docemente perturbado, como o homem quando um prazer espera,
Teu cabelo seguia a invocação frenética do vento
Todo teu volteio apaixonado albatroz,
A quem seu trágico desejar brotava em asas,
Ao único mestre respondias:
O mar, única criatura
Que poderia assumir tua vida possuindo-te.

Ter somente com os olhos não te bastava,
Nem o ligeiro abraço do nadador indiferente;
Querias ainda mais:
Seus infalíveis lábios transparentes contra os teus ávidos.
Tua quebrada cintura contra o argênteo escudo de seu ventre,
E a vida escapando,
Como sangue sem cárcere,
Do fatal esquecimento em que caías.

Aí já estás.
Não podes recordar,
Porque agora mesmo tu eras silenciosa recordação;
E aquela remota beleza,
Em teu corpo cifrada como feliz coluna,
Hoje só alenta a mim,
Em mim que a revivo sob esta escura forma,
Que quando tu vivias
Sobre um altar invisível te adivinhava erguido.

Não te bastava
O sol de língua ardente sobre o negro diamante de tua pele,
Ao largo de tantas lentas manhãs, ofertadas em ócio celeste,
Plenas de um luzente pólen, igual à corola de uma flor feliz,
De repouso divino, divina indiferença;
Caído o corpo flexível e seguro, como uma arma mortal,
Ante a grande criatura enigmática, o mar inexpressável,
Sem desejo nem pena, igual a um Deus,
Que sem embargo houvesse conhecido, à semelhança do homem,
Nossos desejos infecundos, nossas penas perdidas.

Olha também para longe,
Aquelas escuras tardes, quando severas nuvens,
Denso enxame de negras asas,
Silêncio e declínio vertiam sobre o mar;
E enquanto as gaivotas encarnavam a angústia do ar invadido pela tormenta,
Recorda, ao mar, sacudindo sua entranha,
Como insano que desejasse arrancar na luz,
O núcleo secreto de seu mal,
Torcendo em ondas seu pálido corpo,
Seu inesgotável corpo dolorido,
Assombrado ante teu amor, também inesgotável,
Em que pudesses levar sobre sua fronte atormentada
A concha protetora de uma mão.

As graças vagabundas de abril
Abriram suas pequenas folhas sobre a areia preguiçosa.
Uma juventude nova corria pelas veias dos homens invernais;
Escapavam timidezes, calafrios, pudores
Ante o punhal radiante do desejo,
Palavra ensurdecedora para a criatura dolorida em corpo e espírito
Pelas terríveis mordeduras do amor,
Porque o desejo se ergue dos despojos da tormenta
Quando arde o sol nas praias do mundo.

Mas o que importam a minha vida as praias do mundo?
É essa somente que crava minha memória,
Porque nela te vi cruzar, sombrio como uma negra aurora,
Arrastando as asas de tua beleza
Sobre sua dilatada curva, semelhante a um pomposo ramo
Aberto sob a luz,
Com sua armadura de altas rochas
Caídas na direção das dunas de adelfas e palmas,
Em lânguida paragem do preguiçoso sul.

Ainda veem meus olhos as salinas de rosadas águas,
Os leves moinhos de vento
E aqueles pequenos corpos escuros,
Parcimoniosamente moventes,
Junto aos touros fulvos,
Transportando os lunáticos blocos de sal
Sobre as vagonetas, tristes como tudo o que pertence aos trabalhos da terra,
Até as largas barcas resvaladiças sobre o peito do mar.
Quem poderia viver na terra
Se não fosse pelo mar.

Quantas vezes te vi,
Acariciados os ligeiros tornozelos pelo amplo círculo de tuas calças de marinheiro,
O peito e os ombros dilatados sobre a harmoniosa cintura,
Coberto voluptuosamente de lã azul como de hera.
O desdém esculpido sobre os duros lábios.
Anegar-te frente ao mar em uma contemplação
Mais funda que a do homem frente ao corpo que ama.

Oscilantes sentimentos nos enlaçam com este ou aquele corpo,
E todos eles não são senão sombras que velam
A forma suprema do amor, que por si mesmo pulsa,
Cego ante as mudanças dos corpos,
Iluminado pelo ardor de sua própria chama invencível.

Eu te adorava como ideal de todo corpo belo,
Sem véus que mudassem a recôndita imagem do amor;
Mais que o mesmo amor, mais, me ouves?
Insaciável como tu mesmo,
Inesgotável com tu mesmo;
Ainda sabendo que o mar era o único ser da criação digno de ti
E teu corpo o único digno de sua inumana soberba.

Era o entardecer. As aves do dia
Fugiram ante o furtivo pensamento da sombra.
Os homens descansavam em suas cabanas,
Entre a mulher e os filhos,
Desnudos os pés sob a luz funeral do acetileno,
Espreitando o sonho em seus leitos junto ao mar;
Como se não pudessem dormir distantes do que os faz viver
E do que os faz morrer.

Um grande silêncio, uma grande calma
Dava com sua presença o mar;
Mas também pulsava pelo ar adormecido e fresco de letal anoitecer
Um medo escuro
A não se sabe que pálidos gigantes,
Donos de cinzentas serpentes e negros hipocampos,
Abrindo as sombrias águas,
Em luta seus membros retorcidos com rebeldes potentes animais do abismo.

As barcas, como leves espectros,
Surgiam lentamente da areia sonolenta,
Voluptuosos corpos tíbios,
Com a graça do animal que sabe voltar os olhos implorantes
Para as mãos de seu dono, repletas de proteção e carícias,
E pensa tristemente que se distanciam sem poder retê-las.

Não a essas horas,
Não a essas horas de trégua covarde,
Ao amanhecer é quando devias ir ao mar, jovem marinheiro,
Desnudo como uma flor;
E então é quando devias amá-lo, quando o mar devia possuir-te,
Corpo a corpo,
Até confundir sua vida com a tua
E despertar em ti seu imenso amor
O breve espasmo de teu prazer submetido,
Desposados um com o outro,
Vida com vida, morte com morte.

E uma vez, como rosa abandonada,
Flutuou teu corpo, apenas deformado pelas nupciais carícias do mar,
Mais pálidos os lábios, o mesmo que se houvessem dado passo
A toda sua paixão, a ave da vida;
Igualmente belo assim, jovem marinheiro,
Pungentemente triste com tua beleza inabitada,
Como quando irisavas a vida com teus membros melodiosos.

Transformam-se as vidas, mas a morte é única.
Ainda ouço aquela voz exangue, que em seu vago delírio
Chegou até a mim, através das velas caídas na areia, como asas arrancadas;
Alguém que conhecia tua ausência, porque seus olhos te viram morto, tal uma rosa
                             [abandonada sobre o mar,
Dizia lentamente: “Era mais ligeiro que a água”.

Que desertos os homens,
Como chocam sem se ver uns aos outros suas frontes de vergonha,
E quão doce será rodar, igual a tu, do outro lado, no esquecimento.
Assim tua morte desperta em mim o desejo da morte,
Como tua vida despertava em mim o desejo da vida.

***

Yannis Tsarouchis


EL JOVEN MARINO

Luis Cernuda

El mar, y nada más.

Insaciable, insaciable.
Con pie desnudo ibas sobre la olvidadiza arena,
Dulcemente trastornado, como el hombre cuando un placer
            espera,
Tu cabello seguía la invocación frenética del viento;
Todo tú vuelto apasionado albatros,
A quien su trágico desear brotaba en alas,
Al único maestro respondías:
El mar, única criatura
Que pudiera asumir tu vida poseyéndote.

Tuyo sólo en los ojos no te bastaba,
Ni en el ligero abrazo del nadador indiferente;
Lo querías aún más:
Sus infalibles labios transparentes contra los tuyos ávidos.
Tu quebrada cintura contra el argínteo escudo de su
            vientre,
Y la vida escapando,
Como sangre sin cárcel,
Desde el fatal olvido en que caías.

Ahí estás ya.
No puedes recordar,
Porque ahora tú mismo eres quieto recuerdo;
Y aquella remota belleza.
En tu cuerpo cifrada como feliz columna,
Hoy sólo alienta en mí,
En mí que la revivo bajo esta oscura forma,
Que cuando tú vivías
Sobre un ara invisible te adivinaba erguido.

No te bastaba
El sol de lengua ardiente sobre el negro diamante de
            tu piel,
A lo largo de tantas lentas mañanas, ganadas en ocio
            celeste,
Llenas de un áureo polen, igual que la corola de alguna
            flor feliz,
De reposo divino, divina indiferencia;
Caído el cuerpo flexible y seguro, como un arma mortal,
Ante la gran criatura enigmática, el mar inexpresable,
Sin deseo ni pena, igual a un dios,
Que sin embargo hubiera conocido, a semejanza del hombre,
Nuestros deseos estériles, nuestras penas perdidas.

Mira también hacia lo lejos
Aquellas oscuras tardes, cuando severas nubes,
Denso enjambre de negras alas,
Silencio y zozobra vertían sobre el mar;
Y en tanto las gaviotas encarnaban la angustia del aire
            invadido por la tormenta,
Recuérdale agitado, al mar, sacudiendo su entraña,
Como demente que quisiera arrancar en la luz
EI núcleo secreto de su mal,
Torciendo en olas su pálido cuerpo,
Su inagotable cuerpo dolido,
Trastornado ante tu amor, también inagotable,
Sin que pudieras llevar sobre su frente atormentada
La concha protectora de una mano.

Las gracias vagabundas de abril
Abrieron sus menudas hojas sobre la arena perezosa.
Una juventud nueva corría por las venas de los hombres
            invernales;
Escapaban timideces, escalofríos, pudores
Ante el puñal radiante del deseo,
Palabra ensordecedora para la criatura dolida en cuerpo
            y espíritu
Por las terribles mordeduras del amor,
Porque el deseo se yergue sobre los despojos de la tormenta
Cuando arde el sol en las playas del mundo.

Mas ¿qué importan a mi vida las playas del mundo?
Es ésta solamente quien clava mi memoria,
Porque en ella te vi cruzar, sombrío como una negra
            aurora,
Arrastrando las alas de tu hermosura
Sobre su dilatada curva, semejante a una pomposa rama
Abierta bajo la luz,
Con su armadura de altas rocas
Caída hacia las dunas de adelfas y de palmas,
En lánguido paraje del perezoso sur.

Aún ven mis ojos las salinas de sonrosadas aguas,
Los leves molinos de viento
Y aquellos menudos cuerpos oscuros,
Parsimoniosamente movibles,
Junto a los bueyes fulvos,
Transportando los lunáticos bloques de sal
Sobre las vagonetas, tristes como todo lo que pertenece a
            los trabajos de la tierra,
Hasta las anchas barcas resbaladizas sobre el pecho del
            mar.

Quién podría vivir en la tierra
Si no fuera por el mar.

Cuántas veces te vi,
Acariciados los ligeros tobillos por el ancho círculo de
            tu pantalón marino,
El pecho y los hombros dilatados sobre la armoniosa cintura,
Cubierto voluptuosamente de lana azul como de yedra,
El desdén esculpido sobre los duros labios,
Anegarte frente al mar en una contemplación
Más honda que la del hombre frente al cuerpo que
            ama.
Cambiantes sentimientos nos enlazan con este o aquel
            cuerpo,
Y todos ellos no son sino sombras que velan
La forma suprema del amor, que por sí mismo late,
Ciego ante las mudanzas de los cuerpos,
Iluminado por el ardor de su propia llama invencible.

Yo te adoraba como cifra de todo cuerpo bello,
Sin velos que mudaran la recóndita imagen del amor;
Más que al mismo amor, más, ¿me oyes?,
Insaciable como tú mismo.
Inagotable como tú mismo;
Aun sabiendo que el mar era el único ser de la creación
            digno de ti
Y tu cuerpo el único digno de su inhumana soberbia.

Era el atardecer. Las aves del día
Huyeron ante el furtivo pensamiento de la sombra.
Los hombres descansaban en sus cabañas,
Entre la mujer y los hijos,
Desnudos los pies bajo la luz funeral del acetileno,
Acechando el sueño en sus yacijas junto al mar;
Como si no pudieran dormir lejos de lo que les hace
            vivir
Y de lo que les hace morir.

Un gran silencio, una gran calma
Daba con su presencia el mar;
Pero también latía por el aire adormecido y fresco del
            letal anochecer
Un miedo oscuro
A no se sabe qué pálidos gigantes,
Dueños de grisáceas serpientes y negros hipocampos,
Abriendo las sombrías aguas,
En lucha sus miembros retorcidos con rebeldes potencias
            animales del abismo.

Las barcas, como leves espectros,
Surgían lentamente desde la arena soñolienta,
Voluptuosos cuerpos tibios,
Con la gracia del animal que sabe volver los ojos implorantes
Hacia las manos de su dueño, dispensadoras de protección
            y de caricias,
Y piensa tristemente que se alejan sin poder retenerlas.

No a estas horas,
No a estas horas de tregua cobarde,
Al amanecer es cuando debías ir hacia el mar, joven
            marino,
Desnudo como una flor;
Y entonces es cuando debías amarle, cuando el mar debía
            poseerte,
Cuerpo a cuerpo,
Hasta confundir su vida con la tuya
Y despertar en ti su inmenso amor
El breve espasmo de tu placer sometido,
Desposados el uno con el otro,
Vida con vida, muerte con muerte.

Y una vez, como rosa dejada,
Flotó tu cuerpo, apenas deformado por las nupciales
            caricias del mar,
Mas pálidos los labios, lo mismo que si hubieran dado
            paso
A toda su pasión, el ave de la vida;
Igualmente hermoso así, joven marino,
Desgarradoramente triste con tu belleza inhabitada,
Como cuando tornasolaba la vida tus miembros melodiosos.

Cambian las vidas, pero la muerte es única.
Aún oigo aquella voz exangüe, que en su vago delirio
Llegó hasta mí, a través de las velas caídas en la arena,
            como alas arrancadas;
Alguien que conocía tu ausencia, porque sus ojos te
            vieron muerto, tal una rosa abandonada sobre el mar,
Decía lentamente: “Era más ligero que el agua.”

Qué desiertos los hombres,
Cómo chocan sin verse unos a otros sus frentes de vergüenza,
Y cuán dulce será rodar, igual que tú, del otro lado, en
            el olvido.
Así tu muerte despierta en mí el deseo de la muerte,
Como tu vida despertaba en mí el deseo de la vida.

















CONSIDERAÇÕES SOBRE A NOITE DE DIONISO

Ritchelly Oliveira      “   O amor é o servo da loucura’, ‘o ferreiro dos que erram’, o ‘verme importuno’, a ‘doença dos sentidos’, a ‘embri...