Mary Renault, em seu
romance The persian Boy, conseguiu realizar um feito admirável, ao coligar a
força da criação poética, típica de seu gênio, à factualidade dos
acontecimentos históricos. A força dessa junção entre historicidade e devaneio
poético lega-nos uma obra surpreendente, ardente, flamejante, em imagens
arrebatadoras e repletas de sugestão lírica.
A
história de Alexandre Magno, o grande imperador e conquistador da antiguidade,
ganha, pelo traçado de Renault, realces capazes de torná-lo muito mais que mero
personagem histórico, mas ser vivo, pulsante, repleto de vigor e existência. O
impacto de tal verossimilhança é alcançado graças a um efeito narrativo de
simplicidade e singeleza. Trata-se simplesmente do uso do foco narrativo em
primeira pessoa, onisciente, o que nos faz contemplar toda a trama pelo impacto
desse phatos atuante, vibrante. Esse
narrador, integrante fundamental para o equilíbrio e êxito da trama, é Bagoas,
o jovem persa, eromenos de Alexandre.
O
olhar de Bagoas é vibrante, febril, de uma força lírica pungente, porque ele
nos narra os feitos do grande herói pelas cores, perfumes, sabores, texturas da
emoção apaixonada. É esse arrebatamento fulgurante, essa comoção sempre terna,
esse desvelo meigo em face daquele que o nomeia enquanto ser, daquele que lhe
permite a plenitude do amor, que nós adentramos a viva carne das palavras, numa
prosa em tudo repleta de força pictórica, de concretude verossímil, de passionalidade
arrebatadora.
Dentre
as várias passagens que nos chamam a atenção, destaco algumas, que pela
exemplaridade da harmonia técnica no uso dos meios expressivos da linguagem merece ser rememorados e sublinhados. Começo pela passagem em que o jovem
persa é castrado. Isso se dá logo nas primeiras páginas do livro. Tal
acontecimento, terrível, nos coloca diante da singularidade desse jovem,
transformado, pela força do destino, em um eunuco. Isso só faz sublinhar o
caráter homoerótico da personagem e abre, em seu ser, uma transição de gênero,
o que a torna, de certa maneira, andrógina. A terrível passagem em que se
contempla esse momento é de uma concisão e elegância admiráveis. Tudo se passa
com uma naturalidade, com uma rapidez que acaba por nos chocar. Acredito,
inclusive, que a concisão proposta por Renault tem justamente esse princípio,
ou seja, o de motivar pela descrição concisa o terror do próprio fato. Cito,
aqui, o fragmento, em que a personagem nos narra suas emoções após o feito:
O velho cavalo ergueu o focinho e relinchou. [...] Ele começou a correr, [...] aproximou-se do rei encostou-se ao seu ombro.
O Rei afagou-lhe o focinho. Durante todo este tempo estivera mordiscando uma maçã e com ela o alimentou. Depois voltou-se com o rosto encostado ao seu pescoço. Percebi então que ele chorava. (pg. 117)
A descoberta súbita do aguçado amor que Bagoas nutre por Alexandre também é um dos momentos pungentes do livro:
A luz toca-lhe o coração. A concha abre-se.
Pensei, ali vai
meu amo; nasci para o seguir. Encontrei um Rei.
E, disse para
comigo, olhando-o enquanto ele se afastava, tê-lo-ei nem que para isso seja
necessário perder a vida. (pg. 124)
O
que nos fica dessa obra monumental é a força genial de Mary Renault, sua
coragem, sua sensibilidade, capazes de no tocar ao fundo. A autora inglesa, uma
das grandes do século passado, legou-nos, assim, obras de grande maestria
narrativa, obras monumentais, em que o heroísmo épico da antiguidade ganha a força
passional da própria poesia.
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