quarta-feira, 30 de setembro de 2020

O jovem persa de Mary Renault


 Alexandre, o Grande

Mary Renault, em seu romance The persian Boy, conseguiu realizar um feito admirável, ao coligar a força da criação poética, típica de seu gênio, à factualidade dos acontecimentos históricos. A força dessa junção entre historicidade e devaneio poético lega-nos uma obra surpreendente, ardente, flamejante, em imagens arrebatadoras e repletas de sugestão lírica.

            A história de Alexandre Magno, o grande imperador e conquistador da antiguidade, ganha, pelo traçado de Renault, realces capazes de torná-lo muito mais que mero personagem histórico, mas ser vivo, pulsante, repleto de vigor e existência. O impacto de tal verossimilhança é alcançado graças a um efeito narrativo de simplicidade e singeleza. Trata-se simplesmente do uso do foco narrativo em primeira pessoa, onisciente, o que nos faz contemplar toda a trama pelo impacto desse phatos atuante, vibrante. Esse narrador, integrante fundamental para o equilíbrio e êxito da trama, é Bagoas, o jovem persa, eromenos de Alexandre.

            O olhar de Bagoas é vibrante, febril, de uma força lírica pungente, porque ele nos narra os feitos do grande herói pelas cores, perfumes, sabores, texturas da emoção apaixonada. É esse arrebatamento fulgurante, essa comoção sempre terna, esse desvelo meigo em face daquele que o nomeia enquanto ser, daquele que lhe permite a plenitude do amor, que nós adentramos a viva carne das palavras, numa prosa em tudo repleta de força pictórica, de concretude verossímil, de passionalidade arrebatadora.   

            Dentre as várias passagens que nos chamam a atenção, destaco algumas, que pela exemplaridade da harmonia técnica no uso dos meios expressivos da linguagem merece ser rememorados e sublinhados. Começo pela passagem em que o jovem persa é castrado. Isso se dá logo nas primeiras páginas do livro. Tal acontecimento, terrível, nos coloca diante da singularidade desse jovem, transformado, pela força do destino, em um eunuco. Isso só faz sublinhar o caráter homoerótico da personagem e abre, em seu ser, uma transição de gênero, o que a torna, de certa maneira, andrógina. A terrível passagem em que se contempla esse momento é de uma concisão e elegância admiráveis. Tudo se passa com uma naturalidade, com uma rapidez que acaba por nos chocar. Acredito, inclusive, que a concisão proposta por Renault tem justamente esse princípio, ou seja, o de motivar pela descrição concisa o terror do próprio fato. Cito, aqui, o fragmento, em que a personagem nos narra suas emoções após o feito:

 “Dizem que as mulheres esquecem as dores do parto. Enfim, elas estão nas mãos da natureza. Mas nenhuma mão levou consigo a minha. Eu era apenas um corpo de dor numa terra e num céu de trevas. Será necessário a morte para que eu a possa esquecer” (pg. 14)

             Outra cena digna de destaque, clássica, é a passagem em que Alexandre resgata, de um sequestro, o seu cavalo Bucéfalo, Cabeça-de-boi na tradução portuguesa:


O velho cavalo ergueu o focinho e relinchou. [...] Ele começou a correr, [...] aproximou-se do rei encostou-se ao seu ombro.

O Rei afagou-lhe o focinho. Durante todo este tempo estivera mordiscando uma maçã e com ela o alimentou. Depois voltou-se com o rosto encostado ao seu pescoço. Percebi então que ele chorava. (pg. 117)

             Essa passagem só faz realçar o caráter ambivalente de Alexandre. Ele é um guerreiro, porém dotado de sentimentos, de uma ética, que o fazem um herói de natureza divina. Ele a todo momento se desvela em amor aos seus animais, o que lhe realça ainda mais o encantamento de sua natureza sedutora.

            A descoberta súbita do aguçado amor que Bagoas nutre por Alexandre também é um dos momentos pungentes do livro: 

A luz toca-lhe o coração. A concha abre-se.

Pensei, ali vai meu amo; nasci para o seguir. Encontrei um Rei.

E, disse para comigo, olhando-o enquanto ele se afastava, tê-lo-ei nem que para isso seja necessário perder a vida. (pg. 124)

            O que nos fica dessa obra monumental é a força genial de Mary Renault, sua coragem, sua sensibilidade, capazes de no tocar ao fundo. A autora inglesa, uma das grandes do século passado, legou-nos, assim, obras de grande maestria narrativa, obras monumentais, em que o heroísmo épico da antiguidade ganha a força passional da própria poesia.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

CONSIDERAÇÕES SOBRE A NOITE DE DIONISO

Ritchelly Oliveira      “   O amor é o servo da loucura’, ‘o ferreiro dos que erram’, o ‘verme importuno’, a ‘doença dos sentidos’, a ‘embri...